O Deus qualquer…

Perguntaram-me sobre minha fé e escrevi para me lembrar do motivo pelo qual continuo caminhando

maykelnazare
3 min readApr 7, 2021

Atenção! Este texto tem prazo de validade. Minha fé não é rígida o suficiente para afirmar que tudo o que escreverei aqui será uma verdade para sempre. Já sei que não será!

Dia desses, depois de um período conturbado, me peguei pensando sobre minha fé. O que é a minha fé? Fé no quê? Por que não viver sem fé?

Sei que creio em Deus. Mas "Deus" é um título e esse título damos às coisas/pessoas com as quais nos relacionamos. Podemos ter alguns Deuses/Deusas ao mesmo tempo e, talvez, só algumas delas nós chamemos por esse título.

Deus, na minha experiência, conheço como Javé — aquele que revelou sua face em Jesus Cristo. Um Deus que nasce. E aqui talvez o primeiro absurdo da minha fé: Deus nasce e nasce na experimentação de dor e horror por um povo escravizado.

Javé nasce do clamor de pessoas que não tinham um Deus que olhasse por eles, povo sofredor. Gente que não aceitava que Deus pudesse compactuar com tamanha expressão de violência, como o controle exercido sobre os corpos. Os deuses do Egito, conta a história, não se importavam com os vulneráveis e prisioneiros, ao contrário, se beneficiavam dos aparatos político-religiosos da época.

Creio porque creio nesse Deus que nasce do clamor humano, das dores do cisalhamento da carne sob a tortura do abuso do poder. Deus que tem história, lugar e memória.

Creio pois não há como viver sob as mesmas tipificações de violência sem esperança de uma libertação.

Creio porque, em detrimento de divindades que promoviam sacrifícios, nasce um Deus qualquer (sem nome, sem face…). Um qualquer que olha para outros quaisquer, como todo o povo que era escravizado no Egito. Um Deus que clama por misericórdia em detrimento dos sacrifícios.

Creio pois não enxergo outra esperança de viver uma experiência de libertação.

Poderia o povo libertar-se a si mesmo? Até aqui, com meus quase 30 anos de idade, aprendi e hoje acredito que não. Poderosos se utilizam de amarras e estruturas de poder: a religião uma delas. É preciso de uma resposta externa para a libertação — precisamos levar em conta o contexto e forma de organizar o mundo da época. Greves e revoluções, por exemplo, apesar do grande poder, trazem efeitos pontuais e, em diversas outras vezes, os revolucionários se relacionam com o Poder da mesma forma tóxica que antes era apontada como vilã. Isso aqui Paulo Freire ensina dizendo que quando a educação não é libertadora/transformadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor. Então não é o suficiente.

Deus, aqui Javé, surge como esse Outro, externo, que é capaz de apontar as falhas do Faraó e libertar o povo. Mas, como possui memória, constantemente relembra o povo de onde eles vieram para que não se relacionem com o Poder da mesma forma. Então Javé se coloca como esse Poder, num espaço do afeto, que ensina uma outra forma de lidar com o Poder — e assim com o outro, seja como Foucault chamava de micropolítica ou no conceito de política de Hanna Arendt.

Um Deus que não quer ser idolatrado, pois sabe que idolatria gera morte. Mas prefere passear no meio do povo, comer com o povo, falar com o povo e afrontar os poderosos. Um Deus afrontoso, que coloca no lábio do povo palavras que tornam esse povo em alguém: a partir do "Eu sou", sei que sou e passo a ser.

Parêntese necessário: não há aqui intenção proselitista.
Javé me ensinou que, pra além dele, existem outros deuses.
Muitas pessoas se relacionam com os mais diferentes deuses e aqui não há problema nenhum. Até porque muita gente usa uma imagem falsa de um Deus pra produzir morte. Eu gosto mesmo é dos deuses que gostam da vida!
Se você é desses, falamos a mesma língua! Falamos sobre o amor!

Basicamente é nisso e por isso que creio.

Existe uma esperança de futuro onde TODOS OS CORPOS serão libertados!

E enquanto isso acontece, minha fé não me permite parar.

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