O Brasil precisa de um Deus livre!

Pequeno texto para repetir absolutamente aquilo que muita gente já sabe — só finge não enxergar.

maykelnazare
6 min readMay 9, 2020

Tenho tentado partilhar algumas porções de pequenas análises mais profundas em textos mais fáceis de ler (falo disso aqui). Acho que tentar juntar pequenas porções de conhecimento em uma leve narrativa seja um bom meio de expressar o que tenho vivido. Talvez meu lado educador esteja aflorado nesse momento de ensino online. Pode não ser. Posso estar errado. (P.s.: Retomei a corrida nessa quarentena e descobri que provavelmente penso nesses textos-temas enquanto corro.)

Você que vive no Brasil fatalmente já deve ter lido ou ouvido uma frase que soe como “Deus acima de todos” ou já deve ter se deparado com pessoas (ou grupos de pessoas) que acreditam que é preciso estabelecer o que chamam de um “Brasil (terrivelmente?) evangélico” ou um “Brasil cristão”.

Se você é cristão, pode ser inclusive que você concorde com algumas afirmações ou pensamentos muito próximos a esses. Se você não é cristão, lamento por ter que conviver com intenções dessa espécie.

Lendo o texto bíblico é perceptível que Deus nunca habitou os palácios. Também não é possível encontrar momentos que sequer o “povo de Deus” habitara os palácios. Aliás, até é possível, mas não pela “vontade de Deus” e talvez seja sobre isso que o texto trata.

É preciso retomar algumas memórias sobre a categoria que se diz “povo de Deus”. Você deve se lembrar de que os primeiros relatos históricos da formação do povo de Javé são, antes de qualquer coisa, relatos de dor, súplica e um clamor esbaforido pela opressão de um sistema que governava do palácio. O Egito de Faraó oprimia e escravizava os povos estrangeiros que eram em sua maioria povos nômades, que chegam ao Rio Nilo para buscar substratos de sobrevivência. Javé então ouve o clamor contra o establishment Egito-Faraó. Essa é a primeira vez que o relato bíblico cita Deus olhando para o povo. Vale lembrar que os textos posteriores ao Êxodo são escritos cronologicamente depois desse relato. E o texto em Êxodo 12 mostra que ao libertar os escravos das mãos de Faraó Deus não escolhe “a quem libertar”, como se dissesse: todos os cativos merecem ser livres. Não foram só os hebreus que atravessam o Mar Vermelho, mas aqui também é assunto para outra história.

O povo sofre no deserto, pois em suas memórias ainda estavam frescas as categorias de relação impostas e vividas durante longo tempo no Egito. O povo livre não consegue entender o que é a liberdade e que quem os libertou é um Deus que também é necessariamente livre. Reclamam as saudades do palácio e no meio do caminho fazem um bezerro de ouro — talvez o maior símbolo de que eles entendiam Javé como um Deus que (após ter envergonhado os deuses do Egito no episódio das pragas) buscava se estabelecer como o maior nessa “guerra dos deuses”. Poucos entenderam que a experiência de Javé acaba com relações de troca e de estabelecimento de poder com o uso de divindades ou da linguagem religiosa, que os governos se utilizavam. Mais uma vez: Javé é um Deus livre!

Então, após encontrar repouso, esse povo é governado por juízes. Esses juízes eram pessoas conhecedoras da história de libertação do Egito, que tinham o papel de [re]ativar a memória do povo com relação ao tempo em que eram escravizados e da necessidade de estarem sempre flexíveis para que ninguém seja escravizado em nenhum aspecto de suas vidas. Para que eles não repetissem em sua história a injustiça à qual foram submetidos no Egito.

Porém ao encontrar repouso em um território e ao assistir os povos vizinhos “lucrarem” com guerras e conquistas faz com que o coração desse povo, até então comunidade, almeje outras realidades. Para isso o povo-comunidade, que era coordenado por Javé através dos juízes, pede permissão ao mesmo Javé para que se transforme em um Reino e que dos povo se escolha um Rei. E aqui é importante notar que Deus-Javé NUNCA (em maiúsculo mesmo) desejou a transformação dessa comunidade em um projeto de poder traduzido em um Reinado.

Também foi durante o Israel-Reino que Deus foi colocado em um templo. Deus estava no caminho do povo e com o povo. Deus era tabernáculo — uma tenda que poderia ser montada em qualquer canto e qualquer situação. O Deus-livre-libertador NUNCA quis ser colocado em um templo. O Deus que anteriormente estava entre os escravos foi colocado como figura de sustentação do mais alto palácio. Aqui o projeto de libertação proposto por Javé é congelado e transformado em instituição. Javé, o mesmo que questiona a idolatria, é, através “dos seus” transformado no Deus-ídolo.

E note como aqui uma virada importante é feita: vai de Deus-tabernáculo-Israel-comunidade para Deus-templo-ídolo-Israel-Reino-poder. Deus “perde” seu lugar social entre os fracos e é proclamado como quem coroa os fortes.

Muita coisa acontece nesse Israel-Reino e contar toda a história prolongaria por demais esse texto.

Ao final Israel-Reino se divide e Judá, território onde fica então a suntuosa Jerusalém, cidade onde Deus foi colocado no templo, é atigida pelo Império Babilônico. E o que é a Babilônia se não um projeto de opressão guiado por um rei que deseja ser adorado como um ídolo? Um governo estabelecido por uma linguagem religiosa que buscava na opressão dos outros manter seu poder e esplendor.

Se você se lembra da narrativa, alguns profetas como Daniel, são contemporâneos a esses acontecimentos e aqui também existem relatos de que Javé, ao ver o povo padecer mais uma vez, dá demonstrações de que a liberdade, para Ele, é algo inegociável. Deus não estava ao lado da Babilônia. E em outros episódios tampouco esteve ao lado dos poderosos persas e assírios.

Saltando para a chegada de Jesus se percebe que Deus não estava ao lado de Roma e da chamada pax romana, que se utilizava da opressão para conquistar e estabelecer soberania diante das diversas realidades existentes. Jesus chega nesse contexto e logo ao nascer é obrigado a ser levado para o Egito porque o Imperador Romano, figura também sustentada pelo discurso religioso, não queria a chegada daquele que seria conhecido como Senhor. Na cabeça dele “só o Imperador é Senhor”.

Jesus-Messias, filho e imagem de Javé, e toda a narrativa e semiótica do Novo Testamento apontam para um desfecho que está claro desde a primeira revelação: Deus não habita templos feitos por mãos humanas! Javé não aprova que seu nome seja utilizado para projetos estáticos absolutistas de poder!

Deus NUNCA quis ser colocado em um templo ou no palácio. Deus sempre quis tabernacular, se colocar no caminho, na rua. Por sinal é Jesus que, quando na rua, diz para derrubarem o sagrado-templo pois Ele era maior que tudo aquilo. Jesus não se encanta com a estática-sacralidade! Jesus cura no sábado, perdoa pecados, agita o templo com seu chicote.

É interessante notar que Jesus só vai ao templo e/ou à sinagoga para [re]ativar a memória do povo com relação à liberdade concedida por um Javé-livre: quando criança simplesmente dribla seus pais; quando em sua primeira aparição após o início de seu ministério ressignifica o Jubileu; quando nas sinagogas, nas sinagogas do caminho; quando conversa com uma mulher em Samaria.

Vale a lembrança que Jesus-Messias somente é exaltado pelo povo de Jerusalém no domingo de Ramos: na rua, popular, em cima de um jumentinho. No palácio é julgado diante das autoridades e do povo sedento por silenciar aquele que agitava as bases da sociedade judaico-romana, do Estado-religião.

As ideologias são necessárias e merecem ser colocadas no seu lugar — precisam ser criticadas, testadas, questionadas e levadas ao seu limite. Só parece que Javé não quer que seu nome seja utilizado como pano de fundo para formas de organização e relacionamentos estáticas que sejam suporte para necropolíticas, autoritarismos e absolutismos.

Javé é um Deus-livre-libertador! Liberta corpos e consciências de toda a opressão!

E é aí que o texto chega aonde quer chegar: em qual tipo de leitura de texto as baseia quem quer construir um Brasil terrivelmente evangélico?

Não é possível permanecer calado diante de tais discursos. É preciso repetir absolutamente tudo aquilo que muita gente já sabe — só finge não enxergar. Ou pior, enxerga, mas tem sede de estar no palácio, de se sentar à mesa do rei, de partilhar dos lucros de institucionalidades violentas — mesmo que para isso seja preciso assassinar e escravizar corpos e fazer do nome de Javé o nome de um Deus-ídolo.

Uma última observação pessoal: Se todo esse “projeto” não foi possível nem com um rei sábio como Salomão, vocês realmente imaginam que seja possível com o burro do Bolsonaro!? Ah, faça-me o favor!

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