A praga da falta de diálogo

Pequena análise (ou brisa) sobre a existência de um diálogo em realidades onde a estética sobrepuja a essência

maykelnazare
5 min readApr 28, 2020

Esse texto foi motivado por uma conversa com um amigo. Me questionei — e acabei o questionando — se a troca entre Moisés e o Faraó do Egito foi um diálogo ou não. Amigo, esse texto, nem de longe, é sobre você! Ah, e eu acredito que foi um diálogo sim. Porém sem efetividade porque um dos pares do diálogo estava na defensiva [Faraó]. Mas, no final, isso pouco importa.

Feliz por estar escrevendo um devaneio depois de muito tempo. Tenho algumas anotações para diversos textos. Não vou prometer nada. Espero que tomem vida. Enquanto isso: desculpem-me por talvez esse não estar bem escrito. Estou “fora de forma”.

Preciso expôr algumas coisas nesse início: o Egito bíblico do livro do Êxodo é um sistema político-social semelhante com os sistemas político-sociais que vivemos hoje. Buscando grandeza e grandes riquezas é um sistema colonial-escravagista, que desconsiderava a humanidade e oprimia trabalhadores e estrangeiros, dando vantagens para poucos indivíduos em detrimento de uma vida de miséria para tantos outros. Para o Egito existir era necessária uma validação teológico-religiosa, uma espécie de “Deus acima de todos”. Essa validação habitava principalmente o conhecido Faraó. O Faraó era o ápice do Egito, a força máxima, o deus que controlava e era abençoado pelos deuses desse sistema. Uma “perfeita” união de política, economia e religião.

Os escravizados do Egito, sob forte opressão, reclamaram a um deus. Ergueram as vozes para que existisse um deus ainda desconhecido, que fosse diferente dos deuses controlados por Faraó. Eles precisavam de um deus que não patrocinasse aquela realidade. Então Javé ouve o clamor do povo escravizado no Egito. Isso foi tão, mas tão improvável, que era inimaginável para um sistema totalitário que houvesse uma divindade além de si mesma, que ouvisse o clamor de escravos. Afinal, todos os deuses do Egito já estavam sob o controle de Faraó e dos seus. Quem é esse Deus que ainda é livre? (Aqui é outra conversa).

Ao ouvir o clamor dos hebreus e dos escravos do Egito, Javé dá uma missão para Moisés: negocie com Faraó a libertação desse povo. Moisés é um hebreu, que por conta de um infanticídio proposto pelo mesmo Egito, é salvo e cresce no palácio de Faraó. Diante de tal proposta (libertar a mão de obra escrava) Faraó retruca dizendo que essa história de liberdade e de devolução de dignidade é mimimi e distração. Então obriga o povo para que trabalhe ainda mais, recebendo ainda menos. Não há espaço para reajustes sociais, celebrações de liberdade e devolução de dignidade em um sistema totalitário. Em um sistema ditatorial só há uma possibilidade de ser-fazer-existir. (Êxodo 5)

A história continua com uma série de sinais que o Deus-Javé enviaria para envergonhar os deuses desse sistema (político-econômico-religioso) Egito. Porém, antes que algum mal viesse ao Egito, Moisés se encontrava com o Faraó e clamava pela libertação do povo. Convicto em seu totalitarismo autoritário, Faraó se recusava a ouvir a possibilidade de uma outra forma de ser-fazer-existir.

Como já escrito acima, o tal Faraó era compreendido como uma divindade, um mito! Sua palavra e verdade jamais deveriam ser questionadas. Não devia satisfação para ninguém porque os próprios deuses estavam submetidos ao seu poder — semelhantemente divinal.

Toda vez que tinha diante de seus olhos e ouvidos a possibilidade de haver um ser-fazer-existir diferente, livre, sem abuso, diverso e plural, fazia com que seu poder e o poder de suas decisões controlassem a situação.

Diz o texto, por diversas vezes que “os magos do Egito usaram sua mágica e faziam a mesma coisa.”. Os magos do Egito, obedientes ao Faraó, esforçavam-se para fazer os mesmos sinais — e faziam. Os atores do alto escalão do sistema opressor reproduziam com fidelidade os sinais feitos pelos porta-vozes da libertação. Trágico.

E foi exatamente aqui que uma questão me tomou o coração e me inquietou: como dialogar com um sistema opressor? Como requerer libertação?

Trazendo para os nossos dias: Como uma mulher deve dialogar para se libertar de seu opressor? Como um corpo negro faz para que seja reconhecido humano diante de uma sociedade racista? Quais os sinais trabalhadores oprimidos devem dar para que sejam humanizados? Com que motivação alguém deve expressar sua sexualidade diante de olhares vorazes por julgamento? Qual a linguagem para esse diálogo? Quais os esforços? Como lidar com o medo das represálias? Como buscar libertação em uma realidade totalitária e opressora?

O sistema opressor se recusa a ouvir palavras de libertação porque ele sabe muito bem emular a mesma estética. Mulheres se sentem empoderadas ao expor seus corpos; negros se sentem livres ao fazerem suas músicas; homoafetivos parecem incluídos ao assinarem seus papéis; trabalhadores se sentem livres ao receberem seus salários. Não é preciso dialogar quando essa emulação substitui a realidade.

Um exemplo, pra tentar deixar mais claro: No capitalismo sua existência só é vista se você for consumidor (detentor de capital). E para que você seja consumidor “os magos do Egito usam a sua mágica” e te concedem uma renda de subsistência e através de publicidades te fazem consumidor. Passou a ser-existir. Achou-se livre. Ledo engano.

A estética da opressão pode parecer muito mais agradável que a jornada da liberdade. Se nós continuássemos a história perceberíamos que o povo, já liberto, sente saudade dessas “mágicas” feitas pelo Egito. Sentem saudades do que é controle e dos deuses controláveis, porque não sabem lidar com o Deus-Javé-livre e com suas próprias liberdades.

Há um choque entre a estética e a essência.

Precisamos revisitar estéticas e profetizar essências.

Com isso, precisamos dialogar.

Sei lá. É só uma brisa.

Que os nossos olhos sejam abertos!

Que não nos utilizemos das “mágicas do Egito” e não validemos esses discursos e vivências!

Se você já foi tomado pela modernidade e acha que quando falo de sistemas políticos, econômicos e religiosos, falo em um “fora de nós”:

Para além de toda distância que podemos tomar: por qual motivo eu e você ouviríamos alguém que é oprimido pelo discurso que validamos se, ao sermos confrontados, nossos magos se utilizam de mágica para fazer a mesma coisa?

Meu receio é que eu esteja tão engessado em meus sistemas e nossas vivências que eu me torne um totalitário. Receio que eu esteja silenciando a voz de oprimidos pelas mágicas feitas pelas minhas mãos. Que ao ouvir um irmão ou uma irmã, meus ouvidos estejam abertos e meu coração sensível!

Diálogo.

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